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Desde quando é que o amor deixa nódoas negras?

Estás a perguntar-me se EU gosto de mim?

Sim. Se Tu gostas de Ti....

Sim, há uns anos gostava. Acho que gostava ou pelo menos nunca me tinha confrontado com isso assim dessa maneira... Sempre fui uma criança, embora tímida e discreta, bastante feliz, acho. Lembro-me como se fosse hoje, da alegria com que acordava todos os dias e do excitamento de sair de casa para brincar. Era parte da minha maneira de ser na altura fazer as coisas de forma delicada e súbtil para não dar muito nas vistas mas, assim que me cativassem, tornava-me na “menina prodígio”. Palavras da minha mãe. Ela dizia muitas vezes que eu tinha uma forma de estar na vida pouco habitual, sobretudo para aquela idade. Costumava dizer-me que eu era muito resiliente. Eu não percebia lá muito bem o que isso queria dizer mas ria-me simplesmente e abraçava-a, sabendo que teria certamente razão e que um dia talvez conseguisse perceber o significado dessa coisa esquisita da resiliência...

Mas sim... há uns anos atrás acho que gostava de mim.... Lembro-me de ter muitas vezes uma sensação que na altura não sabia bem explicar. Sentia que era boa, que me preenchia e que me acompanhava quase todos os dias mas só mais tarde, a consegui interpretar melhor e perceber do que se tratava realmente. Eu sentia-me importante. Sim acho que era mesmo essa a sensação. Importante. Era assim que me sentia quase todos os dias e sabes porquê? Porque a minha mãe olhava para mim. Ela reparava em mim, conversava comigo, explicava-me as coisas e pedia várias vezes a minha opinião. Dizia que o meu ponto de vista era fundamental para podermos decidir. Havia sempre comunicação entre nós e quando ela não concordava, explicava-me. Sentia-me especial.

Sentia-me especial porque a minha mãe era diferente das “outras”. As “outras” não são minhas mães mas, ainda assim, acho que a minha era a melhor e a mais especial. Um dia no banho, intrigada, perguntei à minha mãe porque é que ela tinha tantas bolinhas cinzentas nos braços, nas costas e algumas no pescoço... Essas bolinhas chamam-se nódoas negras, respondeu ela com um sorriso na cara. O seu sorriso foi um bocadinho incómodo mas eu ri-me. Achei graça ao nome. Nódoas... Essas bolinhas existem, porque, por vezes, somos meias distraídas, acrescentou.

Lembro-me de ter olhado para o meu corpo em busca dessas bolinhas e ter encontrado uma pequenina no joelho. Apontei para ela e olhei para a minha mãe com um ar animado. Isso é porque tu brincas muito e és muito feliz... Nunca mais me esqueci. Era verdade. Era feliz. E tinha bolinhas ou nódoas como lhe chamou.

Bem... Mas se eu antes era feliz, aos 24 anos sentia-me espupidamente abençoada. Encontrei, de uma forma totalmente inesperada, aquele que eu dizia ser o “homem da minha vida”. Para mim, era o mais especial, embora não conhecesse os “outros”. Ele era diferente, nunca soube bem explicar. Com um jeito ponderado mas extremamente perpicaz, acabou por me conquistar e de forma subtil, achava eu, apaixonei-me perdidamente. Fomo-nos conhecendo devagar para nos conhecermos como deve ser; tentámos levar a nossa relação com alguma moderação para que corresse da melhor forma até que um dia, dois anos depois, recebi o anel mais bonito que alguma vez pude imaginar. Aconteceu mesmo comigo e, com a ajuda da minhã mãe, foi o dia mais incrivel da minha vida.

Sempre tive o hábito muito próprio de acordar todas as manhãs numa espécie de excitamento. Naquela altura já não era propriamente justificado pelo entusiasmo de sair de casa para brincar, como acontecia quando era pequenina, mas porque era feliz e tinha mais um dia à minha frente...

Mas houve um dia em que acordei diferente. Acordei preocupada e com um nó no estômago. Como não percebia a razão, porque simplesmente não tinha motivo, tentei ignorar...

Era perto do meio dia, lembro-me, quando olhei para o telemóvel. Tinha nove chamadas não atendidas todas elas de diferentes números.

Tinha também algumas mensagens mas, como estava em reunião, voltei a atirar o telefone para dentro da carteira. Via depois...

Bateram à porta logo de seguida e pediram que saísse com eles. Normalmente isto seria uma coisa inconcebível por isso estranhei e comecei a ficar inquieta...

Numa questão de milissegundos o meu mundo desabou...

Notava-lhes o olhar fixo no meu... Falavam com calma e eu ouvia mas não conseguia compreende-los. Eram palavras soltas, absolutamente sem sentido e não podiam ser reais. Sentia um vazio e os olhos molhados. As vozes soavam-me cada vez mais distantes e as caras distorcidas como se estivessem atrás de vidros embaciados.

Continuavam a falar...

Cruzamento... Um carro passou o STOP... Embate lateral. Ela não resistiu...

Não conseguia reagir. Sentia-me como se estivesse dentro de um pesadelo sem conseguir acordar. Estava ali. A olhar para eles. Parada. Queria que me dissessem que era mentira e que não passava apenas de um sonho. Queria gritar. Queria sair dali! Mas sentia o meu corpo paralisado...

Em menos de nada a minha vida mudou. Num abrir e fechar de olhos a minha mãe simplesmente desapareceu e de um dia para o outro as minhas manhãs passaram a ser o maior pesadelo da minha vida. Levantar-me da cama era confrontar-me com a realidade e isso eu não aceitava. Não queria aceitar! Não o podia fazer. Durante meses a fio o meu único consolo foram os comprimidos que me deixavam zonza e meio adormecida. Ajudaram-me a aguentar aquela dor, aquela ausência infinita.

A luz do dia incomodava-me e o sol causava-me repulsa. As minhas roupas deixaram de me servir e os pijamas ficaram com um ar velho e desgastado... A minha vontade de sorrir desapareceu e viver, para mim, passou a ser um tormento. Faltava qualquer coisa... Sentia constantemente um vazio, uma angústia, um nó na garganta...

Até o homem que eu dizia ser da minha vida me começou a passar ao lado e a vontade de estar com ele foi reduzida a menos de nada. Não me conhecia... Não me conhecia mas também não tinha forças para me querer conhecer. Era-me indiferente... Só queria estar sozinha e que me deixassem em paz. Só eu. No escuro e sem perguntas.

Reparava que ele pouco estava em casa e cada vez menos noites dormia ao meu lado mas, como estava demasiado medicada, não quis fazer disso uma preocupação porque a verdade é que não tinha a certeza de nada. Talvez fosse só mesmo uma mera sensação. Mas também não o questionava. Pouco me importava na verdade...

Os dias foram passando e devagarinho fui reagindo... Deixei de estar tanto tempo na cama e comecei a aproveitar um bocadinho mais a sala. Abri as cortinas e dei um jeito à minha volta para me sentir confortável. Peguei no monte de loiça que estava espalhada pela casa e coloquei na máquina. Não tenho ideia de há quanto tempo estariam aqueles pratos esquecidos mas, pelo aspecto ressequido da comida, há bastante certamente... A casa estava com um cheiro desagradável, existia pó espalhado por todo o lado e tinha um ar desmazelado. Havia uma pilha de cartas por abrir e a roupa dele tinha-se amontoado.

Sentia-me confusa e ao mesmo tempo assustada. Perguntava-me sem parar como é que me tinha deixado chegar aquele ponto? Como é que a minha vida se tinha desmoronado daquela maneira? Ver a casa assim... Naquele estado deplorável... Era quase decadente. E onde é que estava o meu marido? O homem que eu dizia ser da minha vida? De repente não estava em lado nenhum...

Lembro-me de agarrar num papel amarrotado que encontrei algures no meio daquela confusão. Tentei esticá-lo para se tornar mais fácil de ler, fiz uma lista de supermercado e saí sozinha.

Quando estava na caixa para pagar, apercebi-me que não tinha no porta-moedas o meu cartão multibanco. Envergonhada, pedi desculpas e saí imediatamente a correr.

Quando cheguei a casa tentei ligar-lhe novamente, mas o “o saldo não me permitia efectuar a chamada”. Lembrei-me de ir à caixa de mensagens.... “Quando acordares, e se acordares, tens 20 euros em cima da mesa da entrada para o que precisares”.

Ouvi duas vezes a mensagem para ter a certeza que ouvia bem. Aquela voz era-me tão familiar mas o tom totalmente desconhecido... Gelado e vazio. Quando acordar? Se acordar? Sentia um misto de humilhação com surpresa mas medo sobretudo. 20 euros. Questionava-me há quanto tempo estaria isto a acontecer e quem era esta pessoa?

De repente ouvi umas gargalhadas a aproximarem-se da porta mas subitamente houve um silêncio e senti as chaves. Era ele. Mas vinha sozinho....

Fui a correr para a cozinha, fingi estar distraída e não ter dado pela sua entrada. Queria perceber o seu comportamento.

Após alguns segundos, olhei por cima do ombro e lá estava ele, encostado descontraídamente à ombreira da porta com uma das pernas cruzada na outra.

Olha a bela adormecida acordou.... disse. E a olhar-me fixamente, com ar de gozo, acendeu um cigarro.

Eu não tive sequer vontade de lhe responder e, por isso, apenas perguntei com quem tinha vindo.

Fez uma espécie de ruído em tom de desdém, ao mesmo tempo que revirava os olhos e sorria de um jeito sarcástico.

“Querida, quando tu te decidiste enfiar na cama até hoje, também não me lembro de te ter feito perguntas” e virou-me as costas.

Fiquei estarrecida em silêncio. Ele não era a mesma pessoa... Não podia ser. Fui atrás dele e tentei segurar-lhe no braço. Queria perceber o que tinha acontecido. O que se estava a passar e que atitude era esta... Com uma expressão séria, agarrou calma e delicadamente na minha mão, retirou-a de cima dele e afastou-se para o quarto. Senti-me gelada, sem reação e dei por mim sozinha, parada no meio da sala a fitar o vazio...

Quando “despertei” os meus olhos estavam pousados sobre o seu telemóvel e a minha raiva sobrepunha-se ao medo do que ele me poderia fazer. Nervosa, desbloqueei o telefone, o código mantinha-se o mesmo. Respirei fundo, como que a ganhar coragem para o que ia fazer a seguir. Com os dedos a tremer procurei o simbolozinho das mensagens. Encontrei-o e preparava-me para clicar quando senti os seus passos a reaproximarem-se.

Estavas a fazer o quê mesmo? Perguntou-me ele de uma forma estranhamente calma mas com um olhar desconfiado. Tinha o sobrolho franzido e normalmente isso seria mau sinal...

Passou-me pela cabeça dizer-lhe tudo mas não me saía absolutamente nada. Tinha vontade de o agarrar e de lhe gritar o monstro frio em que se tinha tornado mas sentia a minha voz presa. Queria bater-lhe. Só tinha vontade de o esbofetear para que sentisse na pele a forma como me tinha feito sentir. A forma como ELE me tinha feito sentir. Mas continuava ali, estática, a olhar para ele.

Deu um passo na minha direção, aproximou-se de mim e com uma mão levantou-me o queixo e perguntou-me: “Diz lá, o que é que estavas à procura?”

Voltei a desviar o olhar e baixei a cabeça. Estava nervosa. Ele estava diferente. Não o conhecia e, por isso, não sabia prever até onde isto poderia chegar. Éramos dois estranhos. E eu não sabia o que esperar.

Nada... Não estava à procura de nada. Respondi meia a gaguejar.

A sua expressão mudou... Ouvia a sua respiração agitada sob os dentes semicerrados e notava-lhe no olhar a fúria que carregava. Uma gota de suor escorreu-lhe devagarinho pela cara.

Estava com medo.

Queria sair dali.

Quis afastar-me mas, quando me preparei para lhe virar as costas, aperecebi-me que, de repente, estava encostada à parede. Senti-lhe o hálito quente no pescoço e uma dor atravessou-me o pulso. Fechei os olhos para não chorar. Fechei os olhos para tentar não sentir mas cada vez me apertava mais...

Estás a magoar-me. Disse eu num tom tremido.

Os seus dedos subiram e cravaram-se no meu braço com toda a força.

Não-brinques-comigo. Estou a avisar-te! Deu-me um safanão no ombro e eu caí no chão. Virou-me as costas e desapareceu. Fiquei ali, sentada, sozinha. Sentia o sal das lágrimas a chegar à minha boca mas não conseguia reagir. Ouvia ao longe os seus passos e de repente a porta bateu. Não sei quanto tempo passou, não sei quanto tempo fiquei ali mas já estava escuro. Levantei-me, acendi um candeeiro e fiquei parada, a olhar-me no espelho...

Os meus olhos desceram pelo reflexo do meu corpo. Olhei para a cor do meu pulso e uma memória assaltou-me o espírito. De repente vi a minha vida inteira passar-me à frente dos olhos. Como nos filmes sabes? Estava ali tudo. Eu a soprar as velas. Eu a acordar de manhã em excitamento. Eu a brincar às escondidas com a minha mãe. Nós a conversarmos enquanto me dava banho... Essas bolinhas chamam-se nódoas negras. Senti-me gelada. Olhei novamente para a cor do meu braço e depois para mim. Essas bolinhas chamam-se nódoas negras. Conseguia ouvir perfeitamente a voz dela nestas palavras a ecoar repetidamente na minha cabeça.

Comecei a sentir as lágrimas a escorrerem-me pela cara. Não eram saudades. Acredita que não. Saudades da minha mãe senti-as e sinto-as infinitas mas era muito mais do que isso... Foi como um clique. De repente percebi tudo. Tudo o que nunca tinha entendido sobre a minha vida e sobre a minha infância. Era o meu conto de fadas, o meu mundo especial, aquela sensação de que eu era importante mas que afinal não passava de uma farsa... De mentiras. Comecei a reviver cada um dos momentos de uma perspectiva diferente e a perceber aquilo que ela me escondia. Essas bolinhas chamam-se nódoas negras.

Tudo aquilo em que eu acreditava ser real destruiu-se só com a compreensão da memória desta frase dita com um sorriso incómodo há mais de vinte anos atrás. Essas bolinhas chamam-se nódoas negras. As suas palavras repetiam-se vezes sem conta dentro de mim. As bolinhas cinzentas não eram resultado da felicidade. Nunca o tinham sido. Também não aconteciam porque somos meias distraídas. Escondiam uma verdade devastadora sobre mim. Sobre a minha história. Sobre a minha família. Sobre a minha mãe. E sim... Sobre ele.

Sabes o que é olhar para trás e perceber que nada é real? Que o teu mundo tal como o tinhas e guardavas não passava de uma quimera?

Enquanto me fazia esta pergunta vi-a dar um murro na mesa com uma agressividade que nunca lhe tinha visto. Depois simplesmente quebrou. Baixou a cabeça e escondeu-a sobre os braços. Chorou e soluçou compulsivamente enquanto eu a olhava inerte. Não por vontade própria mas por impotência. Porque não sabia o que fazer e porque não estava preparada para o que vinha a seguir. Andei a adiar a verdade durante anos. À espera que este dia nunca chegasse. Para a poupar à dor... Ou talvez por cobardia porque não era a minha história...

Sabia que aquilo que tinha para me contar a seguir era muito mais profundo e brutal do que acabava de me confiar agora. Isto era só o começo... O começo de uma vida que foi um pesadelo revestido de conto de fadas. Por amor. Pelo amor mais incondicional que existe. O amor de uma mãe por uma filha. O amor de uma super Mãe. De uma super Mulher...

(Continua...)

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