(Continuação do texto “Desde quando é que o amor deixa nódoas negras”)
“Essas bolinhas chamam-se nódoas negras”....
Esta frase dita por Ela, naquele dia no banho, ficou-me gravada na memória.
Foi esta expressão, de aparente felicidade e plena despreocupação, que me fez crescer a acreditar de forma inocente que era possível viver de um jeito simples e genuinamente feliz. Sem mais nada.
Foi Ela que me fez acreditar nisso. Foi Ela que me protegeu durante todos estes anos para que não perecebesse aquilo por que passava todos os dias.
Todos aqueles comportamentos “originais” e todas aquelas atitudes diferentes... Aqueles “jogos” e brincadeiras metafóricas que sempre fizeram parte da minha rotina e que, para mim (cuidado da minha Mãe), não eram mais senão divertidos e especiais.... Agora consigo perceber o seu significado.... Era ela a proteger-me. Sempre foi...
“Querida vai brincar um bocadinho para o teu quarto que a mãe já lá vai ter contigo para te pôr na cama está bem?”.
Lembro-me bem do olhar intrigado que eu lhe lançava cada vez que isto acontecia. Semicerrava os olhos, cruzava os braços e ficava parada a olha-la fixamente na expectativa que mudasse de ideias e que me deixasse ficar mais tempo na sala a brincarmos as duas àquele jogo dos planetas.
Quando o pai chegava isto acabava. Acabava sempre mas eu não percebia porquê. Ela sorria de uma forma discreta, mandava-me um beijinho pelo ar e acenava-me com a cabeça “Vai meu amor. A mãe já lá vai ter contigo”. E eu ia. E comecei a ir sempre.
Àquela hora deixei simplesmente de fazer perguntas. Não havia espaço. Não sabia ao certo a razão, mas já me levantava sozinha, sem a minha Mãe dizer nada, e ia para o meu quarto, para debaixo daquela tenda dos animais que um dia construímos juntas. E ficava lá.
Deitava-me sobre uma almofada, de barriga para cima, e ficava a olhar e a fantasiar a história daqueles bichos. Normalmente acabava por adormecer e acordava depois com a minha Mãe a tapar-me já na cama. “Mãe, a tartaruga da tenda diz que não sabe da sua irmã. Podemos comprar uma para fazer lhe fazer companhia? Podemos? Podemos?” A minha Mãe ria-se, dava-me um beijinho na testa e eu voltava a adormecer. Hoje penso se a minha Mãe não se terá arrependido daquela tenda... Eu acreditava que todos eles poderiam ter saudades dos seus pais e dos seus irmãos e, por isso, tinhamos que lhes encontrar companhia de verdade...
De manhã, quem me levava à escola era a minha Mãe. Acordava-me sempre com a música da galinha magricela. Enquanto me vestia, eu explicava-lhe que a música não era assim e tentava ensinar-lhe. Ela nunca aprendia muito bem mas eu também não me importava porque me ria com os trocadilhos que Ela fazia.
Se o pai já tivesse saído para o trabalho, Ela deixava-me ficar na sala a ver os desenhos animados enquanto comia mas quando ele se atrasava a minha Mãe preferia que eu ficasse na mesa da cozinha “igual aos crescidos”. Eu gostava de ser crescida como Ela e imitava-a muitas vezes. Por isso às vezes atrasavamo-nos porque eu sujava a roupa toda. Normalmente quando eu ficava na cozinha, ficava sozinha porque a minha Mãe devia ir ajudar o pai a vestir-se, como fazia comigo. Eu ouvia o seu riso ao longe através da porta fechada. Se calhar, ele também cantava mal a música da galinha magricela e Ela achava piada.
Sempre que o pai se atrasava para o trabalho, eu portava-me bem sozinha na cozinha como os crescidos e Ela ria-se sempre muito com ele. Eu não percebia porque é que não podia estar com eles também, porque queria rir como a minha Mãe, mas como não conseguia sair da minha cadeirinha tinha que esperar que Ela voltasse. Normalmente, Ela só regressava quando o pai saía. Eu ouvia a porta a bater e Ela aparecia. Ele nunca me ia dar um beijinho antes de sair de casa, se calhar tinha muita pressa e não podia chegar atrasado.
Nestes dias, geralmente, Ela ficava triste e não conversava muito. Eu não percebia porquê... Porque antes tinha estado a rir muito com o pai. Se calhar ficava com saudades dele... Se calhar era isso.... Às vezes eu também tinha saudades da minha Mãe... Então eu contava-lhe uma história para Ela ficar um bocadinho mais contente. “Mãe, porque é que o sapo... não lava o pé??” Ela não me respondia nem olhava pelo espelho do meio mas eu não me importava porque sabia que Ela ficava um bocadinho mais feliz e, por isso, continuava a contar-lhe até chegarmos à escola.
“De quem são estas bochechas?” Perguntava-me sempre, todos os dias, antes de me entregar à professora Aurora. “São.... da Mãeee”!! Gritava eu, feliz, como se tivesse ouvido aquilo pela primeira vez. Ela inclinava-se, eu punha-me em biquinhos dos pés, abraçava-a e ia brincar.
Há tarde, quando a escola acabava, a minha Mãe ia buscar-me. Todos os meninos ficavam sentados “como os crescidos” à espera que os pais chegassem. Ela não era a primeira mas também não era a última e eu sabia sempre que Ela vinha. Assim que a via a chegar ao portão, olhava agitada para a professora Aurora, ela acenava-me com a cabeça e eu saltava do banco para o colo da minha Mãe.
Depois iamos ao parque, comer um gelado ou passear e a seguir iamos para casa.
Quando o pai chegava do trabalho a minha Mãe já tinha preparado tudo. Eu já estava de banho tomado e pijama vestido, a mesa estava posta e o jantar pronto a servir.
Às vezes eu gostava mais de jantar na cozinha, enquanto a Mãe fazia o jantar para o pai, porque assim eu podia conversar com Ela. Podia cantar e Ela contava-me histórias. Sempre que eu me portava bem e comia tudo até ao fim, Ela cortava-me a maçã como eu gostava, em fatias muito muito fininhas – maçã papel, chamava eu a rir.
Se eu jantasse à mesa “como os crescidos” era diferente. Brincávamos sempre ao jogo da mímica e do silêncio. A minha Mãe era a melhor na mímica. Mas o pai não. Ele nunca respondia quando eu falava por gestos. Nem olhava para mim, por isso acho que não percebia lá muito bem como se jogava ou então estava só cansado, ou com dô-de- barriga. Acho que ele preferia o do silêncio e, talvez, fosse o melhor nesse jogo.
Nestes dias em que o pai chegava mais cedo, no fim do jantar a minha Mãe olhava para mim em silêncio, fazia um sorriso discreto com o cantinho da boca e eu percebia o que Ela me queria dizer. Era altura de eu sair da mesa, ir brincar para a tenda do meu quarto e fechar a porta.
Às vezes acordava com a minha Mãe a tapar-me na cama gigante do meu quarto. Eram as melhores noites quando Ela dormia ali comigo. Eu perguntava-lhe sempre se o pai não tinha medo de ficar sozinho no quarto. “O pai é forte. A mãe é que tem medo às vezes e vem para aqui para tu me protegeres”. Eu ria-me, ela abraçava-me e voltava a adormecer.
Eu cresci assim. Feliz. A sentir-me especial. A ter a minha Mãe que não era igual a mais nenhuma. A ter a minha Mãe a “trasformar” tudo, todos os dias e a cada momento, na esperança que eu crescesse de uma forma positiva, segura e saudável sem que me aperecebesse de nada. E eu cresci. Cresci a jogar à mímica e ao silêncio e a achar estes jogos normais e divertidos. Cresci à procura de uma irmã para a tartaruga da minha tenda, porque me mandavam todos os dias para o quarto.
Cresci a acordar todas as manhãs com a música da galinha magricela e a ensinar-lhe que a música não se cantava daquela maneira. Cresci a contar a caminho da escola a história do sapo não lava o pé, porque a sentia triste e não gostava de a ver assim com saudades do meu pai...
Essas bolinhas chamam-se nódoas negras...
Naquele dia, quando olhei para o meu braço no espelho, percebi tudo... Vi aquelas bolinhas cinzentas – mas em mim. E lembrei-me que já as tinha visto antes. Todos os dias da minha vida. Foi como juntar a peça que faltava para compreender um puzzle.
Reparei nelas pela primeira vez naquele dia no banho. Via-as nos braços, nas costas e algumas no pescoço Dela.
Essas bolinhas chamam-se nódoas negras...
Depois vi-as também uma manhã. Mais fortes que nunca... A minha Mãe estava a rir-se com o pai no quarto. Estava a rir tão alto... Mas de repente o meu pai saiu. Passou por mim sem sequer se voltar e fechou a porta de casa atrás de si. Achei estranho porque, normalmente, assim que o meu pai saia para o trabalho, Ela vinha logo ter comigo e isso não aconteceu. Continuava a rir, lá dentro, sozinha no quarto. Nessa altura, lutei por me soltar da cadeira e consegui. Queria ir ter com Ela para me rir também. Batalhei para me pôr em biquinhos dos pés para chegar à maçaneta da porta mas não tinha altura suficiente. Então bati. Ela não abriu. Bati com as duas mãos fechadas e com cada vez mais força. Dei por mim a gritar por Ela em desespero – lembro-me como se fosse hoje.
Essas bolinhas chamam-se nódoas negras...
Lembro-me de ficar um silêncio. Ela tinha parado de rir. Ouvi finalmente a porta a abrir. Tinha os olhos inchados e com lágrimas. Não me esqueço. Lá estava ela. A bolinha cinzenta no olho...
Essas bolinhas chamam-se nódoas negras...