Nunca acreditei em amores à primeira vista. Sempre os achei um cliché próprio de filmes de domingo à tarde. Às vezes ouvia as minhas amigas falarem desse amor mágico que as tinha inundado inesperadamente em centros comerciais, discotecas ou até mesmo no metro e ria-me. Ria-me porque, apesar de tudo, sempre vibrei com as histórias delas, que nunca me pareceram reais mas que me enchiam dias de conversa e boa disposição.
Sabes? Sempre fui uma pessoa comum. Igual a todas as outras. Isto não é dito com complacência nem sequer tristeza, acredita. Era só comum. Normal, acho eu, dentro do que pode significar o conceito de normalidade. Tinha dias banais. Ia às aulas, não tinha assim nenhum grande sonho nem nenhum grande objetivo, nem sabia exactamente o que queria ser – mas também isso acho que faz parte da normalidade ou, pelo menos, da generalidade da população pré-adulta. Não tinha nenhum talento especial mas vivia bem com isso. Tinha uma família estável – aí talvez fosse uma privilegiada – e um grupo de amigas comuns também. Nunca fui uma aluna genial mas também nunca tive qualquer problema em cumprir os requisitos. Nunca fui extremamente confiante mas também nunca tive qualquer insegurança ou complexo. Arrisco dizer que era quase aborrecidamente normal. Em nada desviante dos padrões. Só mesmo comum, como a maioria das pessoas que por aí andam. E acho que gostava disso. Na verdade acho que nunca pensei no assunto até hoje.
Já se passou algum tempo... Lembraste? Conheci-te há precisamente 13 anos atrás e desde então que descobri o que era o amor. Sim, por estranho que pareça foste tu. Desconstruíste as minhas crenças tão rápida e naturalmente como me apaixonei.
Lembro-me de olhar para ti, de te tocar, de te sentir e ter percebido tudo aquilo que para mim era impossível.
Ensinaste-me a amar. A amar perdidamente. A amar sem limites. A amar tanto até ao ponto de ser loucura porque essa era a única forma possível de te amar. Sem medo, sem restrições ou tabus.
Não me vou esquecer daquele dia. Era sexta-feira, dia 22 de Abril, e fui convidada para uma festa. Nunca percebi porque quis tanto ir. Se isto fosse uma história talvez dissessem que era o destino. Não sei bem se acredito mas a verdade é que fui.
Estava ansiosa porque não conhecia ninguém. As minhas amigas não iam e eu não sabia bem o que fazer. Chegava e depois? Entrava sozinha ou esperava por alguém? Mas quem? E quando entrasse metia conversa com as pessoas? Ficava num canto à espera que viessem ter comigo? Era tudo novo para mim e, por isso, estava nervosa e sem saber bem como me comportar. Aquilo fugia à normalidade. Os “normais” não iam a festas sozinhos mas eu fui.
Lembro-me de jantar apressada e subir as escadas a correr. Fui para o quarto e despejei o armário todo em cima da cama. Até o soutien escolhi rigorosamente. Pintei as unhas, pus os anéis, maquilhei-me e alisei o cabelo. Escolhi a carteira e desci.
Fui à sala dar um beijinho aos meus pais, disse-lhes que ia a uma festa perto de casa e que não voltava tarde. “Estás em casa às quatro”, disseram. E eu assenti.
Saí de casa e chamei um taxi. Senti arrepios no corpo, talvez fossem os nervos. Quanto mais me aproximava, mais nervosa ficava. Pensei em desistir e voltar para trás mas alguma coisa me impedia de o fazer.
Cheguei. Estava ainda com um pé dentro e outro fora do táxi e já tinha uma mão a agarrar-me no braço. Vais à festa miuda? Bora, entramos todos juntos!
Foi tão fácil. Tão normal.
Poucas horas depois apresentaram-nos e foi amor à primeira vista.
Aconteceu comigo. Já não era mais a história dos outros. A história dos filmes de Domingo à tarde.
Apaixonei-me por ti imediatamente. Apaixonei-me por ti de uma forma louca!
Inicialmente, mas só mesmo no início confesso, ainda tentei fazer-me de díficil e dar aquele ar de que não estava minimamente interessada mas quando dei por mim, de repente, estava totalmente encantada contigo. Enfeitiçada. Enfeitiçada talvez seja a palavra certa. E tornaste-te, em poucos minutos, o foco da minha noite. Fez-me sentido subitamente a razão de ter ido à festa.
Não sabia que aquilo era possível. Pelo menos p´ra mim. P´ra mim não. Nunca me entreguei dessa forma mas contigo foi diferente. Eras fascinante. Fora da norma. Totalmente diferente de tudo no meu mundo normal. Tudo em ti parecia sorrir-me e isso cortava-me a respiração.
Lembro-me de me sentir leve. Sentia-me segura e mais confiante contigo. Deste-me a mão e acompanhaste-me pela noite fora. Senti-me protegida. Senti-me confortável ao teu lado. Deixei de ser simplesmente comum e meramente normal. Deixei de ser uma miuda banal. Senti-me única. Sentia-me especial.
Eram oito da manhã e não dei pelas horas passarem. O tempo voou ao teu lado. Queria ter-te mais e cada vez mais. Só para mim. Só ao meu lado. Lembrei-me vagamente dos meus pais mas tu imediatamente me convenceste a ficar. Fomos tomar o pequeno-almoço e de seguida deixaste-me em casa.
Passaram-se dias, passaram-se meses e não nos vimos mais. Não apareceste e não me procuraste. Desapareceste completamente do mapa mas nem por um segundo me saías da cabeça.
Gostei de ti. Gostei de te conhecer... Amei-te na verdade. Abanaste o meu mundo mas isso seria demasiado forte para te confidenciar e, para me defender, convenci-me de que não tinha sido mais do que um flirt de uma noite aleatória. Vínhamos de mundos diferentes, nitidamente. O meu tão irritantemente normal e o teu tão contrário, tão selectivo, tão exclusivo e tão deslumbrante. Porque virias tu ter comigo novamente?
Na passagem de ano voltámos a encontrar-nos e eu voltei a sentir “borboletas no estomâgo” só por te saber lá naquela noite. Ainda fingi hesitar. Ainda fingi que não queria saber de ti mas quando dei por mim já estava ao teu lado a querer-te comigo mais do que tudo.
Sorri-te. Sorri-te de um jeito melancólico. Ao mesmo tempo que te sorria, interrogava-me do porquê de não me teres procurado mais. Foste egoísta e só pensaste em ti. Porque não me deixaste ser eu a decidir quem EU quero na minha vida? Porque desapareceste desta forma? Tinha saudades tuas. Sentia a tua falta.
E aconteceu tudo novamente... Enfeitiçaste-me outra vez, mais ainda do que na vez anterior. A minha noite começou finalmente a fluir e tudo se descomplicava. Tinha-te comigo. Estavas ao meu lado e, por isso, estava tudo bem. Estava tudo fora do normal e eu comecei a gostar disso, aliás, tornei-me viciada em tudo aquilo que fugia à regra e à normalidade.
Pouco tempo passou até assumirmos um compromisso. Nunca antes me senti assim nem nunca imaginei que fosse possível este sentimento, este amor, esta ligação e esta necessidade de te ter sempre ao meu lado. Fizeste-me ver o mundo de outra forma e acreditar no impossível. Fizeste-me sentir segura, poderosa, irresistível e capaz de vencer qualquer desafio, qualquer obstáculo. Contigo comigo era capaz de tudo até de modular o tempo. Perdi o sono. Perdi a fome. Estava somente apaixonada por ti, focada em nós e tudo o resto simplesmente esqueci. Deixou de ser prioridade.
Os meus amigos e a minha família não sabiam de ti mas achavam que eu estava diferente. Diziam-me isso muitas vezes. Diziam-me isso de tal forma que a única solução que arranjei foi afastar-me. Afastei-me deles para não me afastarem de ti. Amava-te como não sabia ser possível e jamais arriscaria ficar sem ti ao meu lado.
Nos primeiros tempos o nosso amor era inabalável. Era intenso e inesgotável. Nada mais me interessava no mundo que não tu. Sem ti ao meu lado os dias eram vazios e medíocres. As pessoas desinteressantes e os espaços banais. Eu era outra vez um ser avulso demasiado comum e sem história.
Prometeste-me o mundo e disseste que nunca me ias falhar! E eu acreditei porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis. Faltaste à tua palavra. Começaste a estar cada vez menos e, quando estavas, a nossa intensidade já não era mágica. Sentia cada vez mais a tua falta mas tu já não me davas aquilo que eu precisava. Entramos num ciclo vicioso. Quanto mais te afastavas mais eu precisava de ti e menos tu me satisfazias.
Quanto mais te tinha, mais frustrada ficava. Queria sempre mais. Procurava sempre mais. Buscava sempre aquela primeira sensação de quando nos conhecemos pela primeira vez.
Mas nunca mais foi a mesma coisa. Traiste-me.
Fizeste com que me entregasse de alma e coração e que te amasse perdidamente. Entreguei-me e amei-te de uma forma viciante que me deixou incapacitada para mais. E tu traiste-me. Faltaste à tua palavra.
Tornei-me ansiosa, tornei-me má e uma pessoa revoltada. Por tua culpa.
Senti-me miserável por tua causa. Não queria ninguém ao pé de mim. Já não me concentrava em nada. Nada me interessava e quando falavam comigo a minha cabeça viajava para longe. Tornei-me apática e totalmente inexistente. Já nem tu me retiravas a ataraxia. Deixei de viver. Deixou de fazer sentido. Não tinha mais forças. Vivia sem ar. Vivia num sufoco. Não dormia e deixei de comer durante dias a fio. Por-tua-culpa.
E tu? Ficaste simplesmente a ver? Assististe a tudo isto de “braços cruzados” sem coragem de intervir? Não tens vergonha? Qual é o sentido? O Amor para ti é isto?
Tornei-me agressiva e violenta. Ninguém já me reconhece. Todos olham para mim como se fosse uma estranha e como se não pertencesse mais.
Tirei tudo aquilo que consegui aos meus pais e aos meus amigos e fugi. Fugi contigo. Fugi por ti. Fugimos juntos porque essa continuava a ser a minha única razão de existir. A minha única razão de viver. Fizeste-me acreditar nisso! Abandonei os meus pais, abandonei os meus irmãos e os meus amigos. Abandonei-me a mim... Abandonei-me a mim... por TI!
Estou sozinha e sinto medo.
Não está cá ninguém. Não há ninguém...
Deixei de ser irritantemente normal. Sou um nada. Não pertenço a lado nenhum...
*
Pousei os papéis que antes estavam caídos ao lado da cama. Apanhei do chão o lápis que tinha rolado até à ponta do quarto. Organizei-os num monte. Demorei-me o tempo necessário para que ficassem milimetricamente ajustados uns aos outros como se fossem um só. Estava a ganhar tempo para pensar.
Agora conhecia o seu conteúdo. Era uma carta. De despedida. De ponto final. Do fim de um relacionamento corrosivo. Continham as memórias, a mágoa e o rancor de qualquer relação que termina mal mas não eram destinados a Alguém. O receptor tinha um nome mas não uma forma humana como a escrita me teria feito supor.
Olhei para ela na cama deitada. Não parecia a idade que tinha. Os anos reais pesavam-lhe como se tivesse o dobro.
Na carta dizia que tinha sido sempre aborrecidamente comum mas ficaria surpreendida por saber que todas nós a achávamos a Melhor. Fora de série. Especial. Aquela que naturalmente fazia sempre tudo da forma correcta mas sem esforço. Era-lhe inato.
Talvez nunca lho tenhamos dito o quanto a admirávamos por ser assim... O quão grande era o orgulho que sentíamos por fazer parte da vida dela. Acho que nunca lhe dissemos porque era óbvio... Seria?
Nós seres humanos temos essa estranha mania de guardar palavras como se elas se gastassem só por as repetirmos ou como se fossemos menores por dizermos o que sentimos. Tudo nos diz que as palavras são vazias e que os gestos valem mais. Não há teoria sem prática mas também não há prática sem teoria. Palavras e gestos devem andar de mãos dadas. É fundamental fazer mas é importantíssimo dizer – mais ainda no tempo em que as palavras são vazias e precisam urgentemente de ser reforçadas.
Um adoro-te não significa nada sem gestos que o corroborem mas as acções perdem a força e abrem margem a inseguranças e dúvidas quando não há vontade de as fortalecer e encher de palavras fortes.
Talvez tenhamos falhado aí. Para ela, o que era não passava de irritantemente normal mas, para nós, ela era demasiado especial. Única. Os gestos não chegaram para o sentir e talvez as palavras tivessem ajudado a sublinhar.
Olhei-a novamente e depois para o relógio em cima da cama. Estes eram aqueles momentos da vida em que percebemos o valor do tempo. Em que compreendemos verdadeiramente o que significa efemeridade e passagem. O tempo não é recuperável. Nunca.
Cocaína. Mais tarde heroína, disseram-nos os médicos. E depois um mix de tudo o que existia e fosse acessível. Era este o interlocutor da carta. Ou talvez fossemos nós que lhe falhamos.
Olhei para a cama e fitei-a como quem vê o fim de uma vida. Estava desfigurada. Nunca acertaria na sua idade. As feições eram sombrias e a cor da pele estava mais branca do que alguma vez tinha visto.
Fui até cabeceira e olhei uma vez mais para ela. Peguei-lhe na mão gelada com todo o cuidado, já que sentia que se podia partir a qualquer momento. Vi as veias destroçadas sob a pele branca. Respirei fundo e comecei a dizer-lhe tudo o que devia ter dito durante todos estes anos...
Era incondicionalmente amada e admirada. Era tudo para mim. Tinha marcado os meus dias e era um dos grandes eixos da minha vida. Nunca lho tinha dito e só esperava que pudesse ouvir-me agora.
Estamos sempre a guardar palavras como se elas não tivessem força para intensificar as nossas relações. Hesitamos nos gestos com medo que eles nos diminuam ou nos tornem mais fracos. Acabamos por nunca estar inteiros em nada. Contentamo-nos com o superficial e, de repente, o mundo muda e já não há tempo para dizer nem para fazer. Fica-nos esta sensação de vazio e a dor do tempo não voltar atrás.
O mundo muda mesmo. O tempo esgota-se. As oportunidades perdem-se. É preciso dizer tanto como fazer. É preciso valorizar.
Ela era especial e talvez nunca o venha a saber.
Para quê?